domingo, 29 de maio de 2011

Meia-calça



Quando pequena, acho que desde sempre desenvolvi uma opinião toda própria. Gostava de almoçar na sala, vendo televisão na minha mesinha de criança, e tive os mais estranhos animais dentro de casa: coelho, patos, hamsters, tartaruga, passarinho, e claro, gato e cachorro. Contudo, o especial era o coelho. Dinho, nomeei. Até hoje a lembrança de ter que me desfazer daquele do pelo branquinho e dos olhos vermelhos que me foi dado na páscoa, e apenas crescia dentro da casa menor onde morávamos. Das manias, só dormia - e foi assim até alguns anos atrás, pasmem - de abajur ligado, tinha pavor de dentista e cortar cabelo (o que ainda hoje me dá certo temor, nos minutos antecedentes) e a mais marcante dentre todas: não usava calças.
De repente, e não lembro bem porque, rejeitava toda e qualquer masculinidade que me era imposta. Pensava, a cabecinha pequena do cabelo sempre negros com franja: é de menino. Assim como jogar futebol e entrar no banheiro masculino. Ia virar guri. Porém, em relação à calças, era eu totalmente adversa. Fazia birra e não vestia de jeito, maneira e tecido nenhum. Minha mãe, coitada, virou sócia da loja onde comprava meia-calças grossas, finas, dos mais variados tipos. Gostava da liberdade de vestir saia e me sentir feminina. Tiara na cabeça, para crescer a franja, e vestido. Bota, meia-calça. Balé, sapatilha e meia-calça. Na minha teimosia - ainda tão presente - e dentro dos meus caprichos, tão prontamente bem aceitos e resolvidos, é que penso: algumas de nossas loucuras são imperecíveis; perpetuam na eternidade.
Anos depois, aceitei com certa cautela que usar calças não era o que me faria diferente dos garotos que jogam video game, brigam na escola e assistiam lutinhas na televisão. Lembro dessa época com nostalgia e pesar, pelas lembranças, me mudei outras vezes e depois para onde vivo até hoje, e, implementei o uso de calças no meu dia-a-dia. Hoje, se contar, talvez muito não creiam: até faço uso de jeans, e outros tecidos que separem as pernas. A novidade é que, mais do que nunca, as tão femininas meias-calças se fazem totalmente presentes no meu dia-a-dia. Uma por semana, pois como o uso é intenso, os rasgões são frequentes. O curioso é que, mesmo após anos, a liberdade para mim é poder me sentir menina e moça, das pernas soltas e cós despreocupado, de uma maneira que calça nenhuma me faz sentir. Penso então: algumas manias, lá atrás tão escolhidas por nós, retornam com toda uma força que nem mesmo nós sabemos existir? Estão nossos gostos e memórias tão intrínsecos e trançados que, tanta coisa do passado é capaz explicar o presente vivenciado? Acredito nas escolhas feitas puras em intuição e cultura, conhecimento e vontades mistas, tão íntimos e pessoais que como algum DNA codificam o que é apenas nosso e a mais ninguém poderia pertencer. Retornam arroubos esquisitos e singulares assim, quando menos imaginamos. Deixando de ser por moda, conveniência ou estética, para resguardar aquilo na gente que mesmo sendo excêntrico, é também forte: o que compõe apenas pedaços nossos que não se fecham em quebras-cabeças alheios. É das peculiaridades passadas, presentes e eternas que o indíviduo consegue marcar feito carimbo sua marca na humanidade. De meia-calça, cabelo cortado e almoço em frente à televisão. Deixando que os bichos agora sejam as feras domadas aqui dentro, libertas apenas em momentos de mansidão e fuga necessários.