quinta-feira, 24 de março de 2011

Não tenho roupa.


O armário lotado parece murmurar: hoje não, não tem roupa. Eu, que pela vontade própria vestiria o dia inteiro pijama se em casa ficasse, penso na possibilidade - que minutos depois, avalio como inexistente, infelizmente. Dentre a bagunça das peças reviradas, ao avesso, atrolhadas na cama, desordenadas, a sensação de que nada vestiria por completo o humor que carrego e pertenço ao acordar, e desde cedo o mundo deve saber. A manhã acorda e raia o sol, enquanto o tempo parece correr e minutos se tornam segundos. A pressa toma conta dos atos, a desgovernança da tranquilidade matutina, ilustre lugar da paz. Há uma maestria na ordem do sumiço dentro do roupeiro, as portas certas se fecham, quando deveriam abrir, e a blusa correta, junto com aquela saia, se refugia no lugar mais improvável que nosso olhar, mãos e desespero vasculham. Macaquinhos procurados no verão reaparecem, fantasias para possíveis festas à fantasia ou halloween se redescobrem. E nada da mistura explosiva que necessito exibir. Insatisfeita e com a sensação de monstra do dia, feia do mês, e brega do ano (concorrente à todas as estatuetas do Oscar das mal vestidas) lá vou eu mostrar pro mundo esse lado descombinado que nem mesmo sabia existir nos dias ruins.

Ele liga e pergunta se quero jantar fora. Murmuro baixo, para que não ouçam. Aceito, e mascaro a felicidade latente, para contar apenas a quem perceber. Em casa, o drama de dias atrás, daquela semana passada, de uma vida inteira reaparece com força estrondosa. Ressurgido das cinzas, como quem me diz: desista de comprar todas as calça jeans bem ajustadas, vestidos de altura certa e blusinhas coringas do Universo, para hoje você não tem roupa. Xingo a diarista, que de certo, deve ter escondido numa intuição de saber que precisaria eu, mais tarde, justamente de tal indumentária. Até mesmo metida dentro das gavetas, quem sabe em Nárnia, algum achado que não estas simplicidades que provo, provo, e desgosto. Resolvo começar o look pelo sapato, aquele novo. Vestido e colete, que troca e vira vestido com jaqueta, que despe e troca por saia jeans e blusinha preta; mais básica impossível. É assim que vou, e pronto - se ele me quiser, que seja sem esses artefatos têxteis que nada dizem, e ao mesmo tempo nos entregam. Roupa é complemento, penso. Sapato sim, é necessidade feminina, concluo. E com a bolsa recém adquirida, lá desço eu para esperar o cara que me ligou e disse já estar aqui na frente, espero que me ache gata mesmo no dia em que me sinto apenas borralheira.

Entrevista de emprego. O que vestir para passar sobriedade, e também, jovialidade? Como me mostrar responsável, e deixar a sensualidade, o glamour e feminilidade em casa? Complicado. Paciência, peço a mim mesma. Voraz, me vejo bagunçando novamente as dobradiças impecáveis que construí ontem à tarde, num momento de parcimônia e inquietude. Terninho, e depois calça jeans. Saia alta, bata, botas, scarpin. E nada. Me pego sentada, de calcinha, sutiã (ambos singulares, desconjuntados) na cama, como quem quer chorar mas não vai estragar o make. Mãe, não tenho roupa. Linda de qualquer jeito, ela diz. Mas vai simples, completa. Sem brilho e cor demais, esquece o xadrez e o salto alto. Sapatilha, vestido simples e casaqueto, me vou. Saio como quem quis ficar, incompetente de combinar o que compro.

Ócio puro. Uma tarde vazia que se decorre do sofá para a mesa da sala, das escadas, para a cama no meu quarto. Resolvo brincar de estilista própria, e provo metade do meu armário - quase explodido. Acho combinações perfeitas pra tudo que é ocasião, e prometo vestir algum dia. Outro qualquer que o inconsciente grave, e lá adiante, apenas pegue o vestuário certo, sem deixar que me consuma um pingo de indecisão. Sabendo que, pela frente, muitos outros dias em que terei todas as vestes do mundo e não encontrarei nenhuma que preste, virão. Me reconhecendo no grupo a que todos nós pertencemos daqueles que mal prestam atenção quando o certeiro lhe passa; e sentem falta depois, de mãos (ou corpo) vazio. Nu.