quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Ela lê.


Por entre a cama larga, os lençóis desarrumados, e um cobertor pendendo de um lado para outro, puxado por ela sentindo frio, e por ele querendo se cobrir, toca alto o despertador, como num susto. Acorda ela, que mal dormiu. Enquanto ele, no automático, olhos fechados apenas resmungando sons incompreensíveis, e apertando no botão "soneca". Mais dez minutinhos. Olhos abertos, hiperatividade à mil. Do lado, ele dormindo. Anjo, sono pesado, cândido. Um doce de se ver. De pé, pela janela, uma construção. Barulho de obra, o som dos carros, das pessoas que vivem e nem se importam com qualquer existência, que não a delas mesmas. Passos silenciosos até o banheiro, dentes escovados, hálito de menta. O pijama dele. Olha pras roupas de dormir que à ela não pertencem, e sorri. E então pega a bolsa, as pastas, e encontra o livro que ainda está na metade. García Márquez é uma ótima companhia para aquela manhã ensolarada e ainda não iniciada. Lê, e devora palavras, se delicia a cada frase descoberta, altiva. Caí pra dentro do texto, e a cada dez minutos ainda se alarma como se fosse o primeiro, tão audível é o sinal dos minutos adiados, e ele dorme, sem notar. Enquanto ela o trai na mesma cama com um velhinho colombiano, tamanha admiração pelas sílabas que absorve, verbo que conjuga, pingo sem i. Se deixa levar por alguma magia realista que folheia. Outro par de olhos abertos, a observam então num momento de adultério não culposo, que não envolve demais seres, nem seus corpos e mentes, e mas sim suas ideologias, utopias, escritos. E ela era uma menina que antes mesmo do café da manhã, de tomar algum banho, ou mesmo de fechar os olhos e continuar dormindo até que a hora exata chegue, lê. Divaga, se perde em vocábulos. Uma garota com um livro, e nada mais no mundo. Você está mesmo lendo? Incrédulo, pasmo, pergunta. Ela poderia ser uma daquelas que ligam a televisão, o acordam desajeitadamente com um abraço sufocante, ou simplesmente se vestem e se vão, mas ela lê. E não liga a mínima se durmo, ou me visto. Se tomo banho, e como meu sanduíche natural. Ou escovo os dentes. Ela e sua leitura, inseparáveis, sobre qualquer decreto no mundo. Ignorando todas as possíveis crises mundiais, novas músicas na rádio, e minha vivência sonolenta. Estou lendo, afirma. Cai por terra a miragem, a visão solidificada que talvez fosse um holograma, ilustração. É real: ela está lendo. Tenho vontado de tocá-la, pegar na sua perna ou braço, pra ver se é real. Estirado na cama, uma fêmea que ao invés de pular em cima de mim e me atacar, vocifera em cima de um ser inanimado que muda a cada virada de página - e possivelmente, a surpreende mais que eu. Por que você tá lendo, a essa hora, hein? Percebo a dureza com que os vocábulos lhe saem da  boca, e não é comigo a repreensão. É com essa atitude estranha, que ele nunca deve ter ao menos visto. Alguém que acorda ao seu lado, e se distrai com um livro. Tão distinta dele, que sofre por repulsa às letras. Sou quase extraterrestre, fada, anjo, vertigem. Eu estou lendo, e ele me decifra com os olhos. Incomoda duas pestanas pousadas sob mim e meu lazer, enquanto não compreendem porque faço isso e não durmo. E ao mesmo tempo, toda essa diferença inebria.
Largo o livro e o olho também. Tô lendo porque gosto, tu estavas dormindo, e eu senti vontade de ler. Tô na metade do livro. Quem é o escritor? Agora, ele quer saber com quem ando me conectando, que não com ele. Ar de ciúme, clima tenso. Gabriel, eu digo. Completo com García Márquez, pra não sair do apartamento chutada e apenas com o pijama dele. Até que ele me desarma os braços, suspira e me faz largar minha fonte de evagação possível até ele voltar a vida e parar de se mexer na cama, puxando tantas vezes a coberta que quase levantei e desliguei o ar condicionado. Me abraça tão forte, e posso sentir seu pensamento telepático, que pego no ar: ela lê de manhã. Não é tomando o café, e nem quando no banheiro. Muito menos no ônibus. Ela lê quando quer, e se for pela manhã, banhada pelos raios de sol que pegar seu pé, ela adora. Dorme com aquela cara de petulante angelical, e acorda lendo, me desvendando instintos que nem eu mesmo conhecia. Toco em seu cabelo, beijo sua boca, e ela é real. E culta. Inteligente, que dá até medo de falar qualquer coisa errada, que eu comento política pra ver se impressiono. Coloca então a perna sob as pernas dela, e diz: vamos dormir mais dez minutinhos, e chega de leitura. Fica aqui comigo em silêncio, que eu quero desvendar teu coração. Sem braile, e código de barras. Tu, minha revista, e eu, seu leitor fanático.

(Porque ela era uma guria que lê, e hoje quando ele acorda, ele não sente mais nenhum ciúme e é possivelmente aclamado com tanto calor humano. Não há mais presença feminina que respeite o seu sono, e sente com as pernas cruzadas e o livro no colo, desviando atenção. Hoje ela é uma leitura voraz de outros corpos e comportamentos, e sente uma imensa falta daquele contato improvável entre uma menina que lê, e alguém que o faz tão pouco. Ainda mais, quando pela manhã.)