sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Dias de Clarice

Trinta e quatro anos atrás. Minha mãe uma criança, nem ao menos pensando em me ter. Provavelmente, brincando na grama, vivendo a vida de interior onde se come pão feito em casa, e massa caseira toda semana. Meu pai, menino da cidade, passeava por aí em seu triciclo e corria, veloz - sempre aventureiro. E talvez nem tenham acompanhado de perto toda a cobertura desse evento todo que foi, a morte da ucraniana mais brasileira que mais acrescentou, em termos literários, para o país. Você, Clarice. Adicta fervorosa do cigarro, sempre à mão. Representante intensa das letras, mesmo depois do acidente de sua casa queimada. Nos deixou órfãos, cedo partiu. Sedentos por mais, quem sabe. Palavras tão bem manuseadas por seu pensamento, colocadas em ordem por suas mãos, batendo à máquina de escrever, outro vício. Feminina. Uma mulher com alma de anjo, queres passionais, de ser-humano que queria ser mais, se superar sempre, a cada escrita. Singular ao mundo brasileiro, foi pessoa universal, provinda do velho continente (ainda assim, querendo interminavelmente, pertencer a essa pátria, ser reconhecida como cidadã do maior país da latino americano). Dificultosa, como intrínseca. Visceral. Essa era a sua persona, nos contam todas as ótimas biografias já lançadas com a temática do seu existencialismo. Não pelo que vi, ou meus pais não me contaram - tão jovens que eram. Sobretudo, desse jeito que nos narram pelas diversas biografias, pela dimensão ensurdecedora que suas palavras tomaram apenas hoje em dia. O reconhecimento gosta de chegar, aos que melhores foram, e tanto se dedicaram ao longo de uma vida, quase sempre apenas tardiamente, o que é uma pena.

E se viva, como veria todo esse alvoroço à sua volta? Com temor, ou algum contentamento? Frases clichês, fragmentos esdrúxulos, trechos que não a pertencem levando seu nome e assinatura redes sociais, trabalhos de faculdade, presentes com cartão e dedicatória país afora. Para quem leu, e é admirador há mais de anos, um nojo. Realmente desgostante. Eu, que por volta dos quinze anos (ou seja, há quatro), me vi iniciada numa leitura capaz de fazer submergir por horas, habitar temporariamente outras galáxias, uma realidade inexistente, porém, impactante de tão detalhada, hoje quero continuar gostando da sua literatura, Clarice, mesmo que um mundo clichê me faça ter náuses e um pouco de ciúme por não saber ser apaixonado da maneira avassaladora como seriam, caso realmente lessem suas obras. Se consideram fãs do que conhecem apenas superficialmente - porém, infelizmente, essa é uma das ressalvas do mundo atual. Duvido que você fosse simpatizar.

Enfim, ao invés de sentir uma felicidade possível em ver seu nome na boca do povo, nos sites e jornais locais e de demais estados, é a perplexidade desse saboreio frívolo a única coisa que consigo sentir. Que, mesmo após esses trinta e quatro anos, pessoas leiam e consigam apreciar um texto inteiro seu, no lugar de apenas se apaixonar por uma frase amputada. Que amanhã, ao comemorarem seus noventa e um anos (prefiro os números escritos em extenso, é mania minha), quem realmente é adicto da sua literatura a explore da rica maneira que só consegue quem tem sensibilidade suficiente para suportar: lendo-a inteira, não apenas em aplicativos ou nas errôneas junções de palavras que pelas suas frágeis mãos não foram escritas ou datilografadas. Tão logo acaba esse modismo de querer conforto no desconhecido, disseminando por aí o que mal conhecem, elegendo como "escritores favoritos" de temporariamente algum outro que pareça dar conselhos por meio da escrita, e volta a paz em torno daqueles que conseguem contemplar com destreza uma literatura preciosa, pensante e na qual a gente se inunda e mergulha com prazer. Singularíssima, excepcional. Absoluta.